Sentado na esquina, o jovem morador de rua, barbudo e descabelado, dispara impropérios desconexos e raivosos para o alto. Outro, mais velho, inchado de bebida, vem pela rua carregando um saco de lixo preto no ombro, fumando. Aproxima-se do cabeludo e oferece a minúscula bituca do cigarro. Com a mão imunda, o outro aceita e mete o quase nada na boca. Solta fumaça. O mais velho diz que tem um presente para ele. Diz isso e repete mais de uma vez enquanto mexe no bolso e dali tira o que parece ser um chaveiro já com chaves penduradas. O mais novo examina o objeto inútil como um índio diante de um relógio, com curiosidade e ceticismo. Estende a mão devolvendo a bituca. O mais velho faz um carinho distraído na cabeça dele, o olhar perdido. O sinal verde arrasta o táxi e os mendigos até aqui, mas eu já não volto para casa. Abro a porta e entro no mundo. Sem a proteção do isolamento, sem protocolo, sem máscara, sem paredes. Estou inteira com eles, passando o cigarro, fazendo cafuné, trocando presente achado por aí. Estou suja, descabelada, gritando xingamentos de raiva. Enlouquecendo. Salvando-me com gestos de afeto, de cumplicidade, de acolhimento. Estou desprotegida e desalmada. Eu sou o tempo que passa e distancia a casa da rua. Sou o táxi que segue quando o sinal autoriza. E o homem sujo que fica ali até acabar.
Cutucando as plantas e falando sozinha. Comemorando um broto surgindo, sacando fora as folhas secas, avaliando a muda que veio da fazenda, com pena de tê-la tirado da terra boa e larga. Uma conversa comigo mesma de carinho e reclamação, organizando a tarefa em voz alta, sabendo-me acompanhada. Pensei no Geraldo Vandré, que encontrei há muitos anos quando fui ao Campo de Marte fazer uma matéria sobre a escola de pilotagem. Alguém me apontou o Vandré lá no fundo, cabeça branca, macacão de mecânico, metade do corpo enterrado num avião pequeno, cutucando o motor. “Ele vive aqui, fica mexendo em motores velhos e falando sozinho. A gente deixa porque tem respeito pela história dele.” Cheguei perto, mas não tive coragem de me apresentar. Para não dizer que não falei das flores era o chavão que ele não precisava ouvir e do qual talvez até fugisse. Nem que quisesse poderia afastá-lo daquele mundo onde me pareceu absolutamente à vontade. Conversando com os motores como eu com as plantas. Deixa quieto.
O som macio dos pneus contra os pedregulhos veio crescendo. Mantive a pisada, não desacelerei nem apertei o passo, entretida com o meu próprio barulho na estradinha de terra. Pipocas estourando debaixo dos pés. O motor era silencioso apesar da idade da caminhonete. Os velhos fazem barulhos, pensei. É preciso estar atento para não gemer a cada gesto puxado, por exemplo. A música do radio chegou logo em seguida tocando baixinho, sem pressa, no ritmo do movimento do carro. Quando me alcançou, aí, sim, quase parando, o motorista cumprimentou pela janela aberta, boa tarde, virando a cabeça no momento exato em que o cachorro ao seu lado também o fez. Respondi, a voz saiu fininha, estridente, talvez porque guardada muito tempo, quebrando a afinação do momento. Ele mudou a marcha e seguiu levantando poeira e deslizando pelas pedrinhas até sumir na curva. Passarinho piou e foi só.