Chegou arrastado pela mãe num impecável uniforme do Palmeiras, meião, chuteiras oficiais e tudo. Parou em frente ao espelho com cara de choro. A franja escorrida vinha reta, fazia uma curva acentuada à direita, subia apressada e então voltava e seguia seu curso normal. O desenho irregular do cabelo abria espaço para um corte horizontal na testa do menino, ainda inchado, fechado com pontos escuros. Veio a cabeleireira, uma japonesa elegante, séria, monossilábica e mandou tirar a camisa verde e branca. A mãe obedeceu, ele submetido, peito magrelo, ossinhos de fora, olhos colados no reflexo da sua tristeza. As lágrimas caindo. Fecharam o velcro do avental com desenho do Super Homem e foi ali que ele ganhou força. Tá me enforcando! Não consigo respirar! Quero ir embora! A mãe falou qualquer coisa num tom baixo e firme e reforçou a mensagem com um aperto na mão dele. A japonesa sacou a tesoura. Quando os primeiros fios voaram ele chorou alto e dolorido. As chuteiras chutando o ar. A boca aberta, ele babando, fazendo que ia vomitar. Tem cabelo na minha língua! A mãe veio com uma toalha secando a baba. Tem cabelo nos meus dedos, olha! Abria a mão e mostrava os dedinhos. A japonesa passou para a máquina e com um movimento seco empurrou a cabeça dele para frente. Começou a trabalhar a nuca. Eu não tou vendo nada! Quero ver! Tá doendo muito! A mãe endurecendo de constrangimento. Alguém chega com dois pirulitos vermelhos em formato de coração e três balas. Se você deixar ela terminar direitinho pode ficar com tudo. Engoliu o choro olhando para os doces no colo e conferiu, dois pirulitos e três balas. Limpou o cabelo que caía sobre eles. Levantaram a franja desfiada, passaram gel. Cabelo de jogador de futebol! a mãe salientou. Mas já não interessava. Abriu o pirulito e meteu na boca vitorioso.
Estamos contentes porque conseguimos um bom lugar no trem de Berlin à pequena Calw, no sul da Alemanha, terra de Hermann Hesse. São dois sofás ao lado da janela e há uma mesa entre eles onde acomodamos um vinho, pretzels fresquinhos, uvas e maçãs. A viagem é muito verde e longa e tem diversas paradas. Numa delas, entra um grupo de sírios, homens, mulheres, bebês, crianças, malas, sacolas. Caminham até o meio do vagão olhando para os lados, atordoados, mudos. Só as crianças falam e os bebês choram. Um rapaz parece mais à vontade e orienta os outros a ocuparem os assentos vazios aqui e ali, mas eles não querem se separar e ficam amontoados de pé, com os bebês e a mudança nos braços. Saímos da mesinha, nós também carregando deselegantemente nossas coisas, comida, bebida e tal, e oferecemos os lugares que funcionariam bem para a turma. Em silencio, vão se ajeitando ali, o rapaz mais à vontade agradece num inglês quebrado e nos ajuda com as malas. Depois, vimos que ele levava as pessoas ao banheiro, ao restaurante para comprar o lanche. Sorria educado quando passava. Pedi à Deus por ele, para que cumpra seu papel com sucesso, para que seja a ponte entre seu mundo desmoronado e o novo mundo que precisa ser construído por todos nós.
O homem chacoalhou o galho com força. A amoreira estava vermelhinha lá no alto. As frutas mais fáceis tinham sido apanhadas por outros frequentadores do parque ou derrubadas na chuva da noite passada. O homem não teve pena e fez o galho entregar tudo. Pensei que se quebraria, mas ele sabia mais. As frutas caíram na grama e fomos catando, alguns timidamente fazendo que era só acaso, outros, ele mesmo, enchendo as mãos e a boca com vontade. O garotinho achava graça quando conseguia pisar tirando sangue delas. Mais gente chegou. Um senhor dobrou-se lentamente num movimento de apanhar às avessas, alcançou o que pode no chão e colocou na pochete atada à cintura. O guarda olhou feio, pensei que daria fim à farra. Acendeu o cigarro e fumou. Escolhi uma gordinha, escura, com cara de gostosa. Tirei uma sujeirinha colada nela e meti na boca. Explodiu. Era uma geleia pronta. Foi o que ouvi das mulheres ao meu lado. Sorrimos em comunhão reconhecendo a delícia das amoras maduras e do momento. O agachar e levantar mil vezes atrás das melhores numa gincana infantil cheia de memórias pessoais. Senti o gosto disso também lembrando-me da calçada manchada da minha infância. De vez em quando o homem dava uns chacoalhões de novo sendo dono do que não era. O guarda fumava. A gente recolhia o que caía. Eu podia ter seguido a minha corrida e estou me cobrando até agora, mas a vida às vezes desencaminha a gente dos nossos planos. E só um tonto não obedece.
Enquanto o amigo me esperava num restaurante bacana, de arquitetura contemporânea e cardápio refinado, entrei por engano num outro, pequeno e simples, música ranchera, sombreros nas paredes, burritos, tacos e tal. Copos com caveiras aplicadas, cactus como paliteiros. O carrinho com as inevitáveis paletas, sobremesa self service, estacionado ao lado do balcão. Uma pia entre as mesas onde, como num ritual, os frequentadores lavavam as mãos depois de comer. A garçonete pediu licença e passou pano no chão debaixo das minhas pernas.
Achei exótica a escolha do amigo e enquanto o esperava sentada ao lado de uma falsa loira tatuada do pescoço aos pés, imaginei a história que justificaria o encontro naquele lugar. A fachada discreta no centro de São Paulo reuniria sobreviventes da guerra do tráfico, o elenco de Narcos encontrando-se ali para degustar, a preços populares, a autêntica comida mexicana preparada por uma descendente da cozinheira asteca que servia a Casa Azul, de Frida Khalo e Diego Rivera. Questionei minha rigidez estética diante da decoração duvidosa do lugar incluindo o design do cardápio, um coiote uivando para as estrelas no deserto, achei que era para ser engraçado e ri e agradeci mentalmente a oportunidade de conviver com gente original e sem preconceitos como meu amigo.
Quando a Corona já estava quente, o celular tocou e a história era outra. Dessas coisas improváveis, os dois restaurantes mexicanos eram praticamente vizinhos. Vi meu amigo acenando lá fora, disfarcei e encaminhei-me constrangida para o mexicano chique.
Me contou que a avó sofria de epilepsia, teve uma convulsão, caiu no tacho de goiabada quente e morreu. Fiquei encantada com a força daquele episódio. Fiz repetir várias vezes e a cada uma delas eu via mais de perto. Aquela avó já era a minha, o doce eu tinha comido com os primos na fazenda. O fogão era de lenha, o tacho de cobre, a colher de pau. O velório no casarão aconteceu com o caixão fechado escondendo o rosto queimado, untado de doce, o cabelo cor de rosa colado num coque.
Escrevi a história assim mesmo, imaginando os detalhes que ele nem tinha, sem colorir muito porque o fato em si era dramático o suficiente.
Agora vem dizer que não sabe se aconteceu de verdade ou se inventou. Desculpe, fui longe demais com isso para devolver. Emprestei nome, corpo, cheiro, dor e medo. Assinei. E como diria minha mãe, esparramei pela internet.