Conheci um homem que não sabe enrolar as magas da própria camisa. O casamento se sustenta na dependência que ele tem da mulher para se vestir.
Quando começamos numa agência de publicidade japonesa, meu chefe advertiu: são japoneses de verdade, não os interrompa quando estiverem falando, não deboche das regras e, sobretudo, não fique tocando neles. Foi como se tivesse me dado uma ordem para fazer as três coisas. Às vezes, simultaneamente. Era avistar um colega japonês, tão distinto, tão silencioso e me dava um comichão, não podia me segurar. Cumprimentava beijando e abraçando, amassando seus ternos e vestidos impecáveis. Fazia uma pergunta e à menor menção dele responder, emendava um comentário e outra pergunta em cima e já ia respondendo como se não precisasse nem ter perguntado. A reação era de desgosto educado. Numa visita ao escritório em Tóquio, vi dezenas de cartazes com o desenho de duas pessoas de perfil com as bocas abertas e a orientação, traduzida por um funcionário local: Conversem entre vocês! Uma campanha para que o ambiente da firma fosse mais interativo. Pedi para levar como prova de defesa das acusações de irreverência corporativa e já ia arrancando da parede, ele sorriu amável e respondeu monossilábico: Não.
Ao contrário do que se poderia esperar, o tempo não flexibilizou as nossas relações e até o fim seguimos, eu avançando o sinal e eles firmes no seu quadrado. Me lembrei disso esses dias. Um metro pode ser pouco, mas pode ser tanto!
Fui ter com o amigo, escritor de renome, e arrisquei dizer que andava pensando em, talvez, escrever um livro. Respondeu sem levantar os olhos do computador: Mas não é autobiográfico, é? Todo mundo acha que a sua vida dá um livro. Para mim, isso é preguiça. Menti que nem havia me passado pela cabeça essa vaidade, imagine, estava justamente pesquisando a história de uma família em viagem pelas tundras gélidas da Sibéria quando foi atacada por gigantescas plantas carnívoras que a devorou aos bocados, roupa, sapato, mochilas e tudo. Sobrou uma criança, autora do relato duvidoso. Ah, sensacional! Isso, sim, dá um romance e tanto! Estava agora olhos nos olhos comigo, dois escritores num momento de cumplicidade. Tentei acompanhar o seu entusiasmo disfarçando um sorriso num movimento muscular forçado até doer o rosto. Evoluímos no roteiro da tragédia, ele sugerindo situações do banquete humano para torná-lo mais apetitoso. Disse isso e riu da própria piada. Quase me convenci ali de que, ficção por ficção, a história da família dizimada era melhor do que a minha que nunca teria gente engolida e, longe do cenário exótico siberiano, se passaria basicamente numa cidadezinha pacata de Minas Gerais. Depois, para ser franca, deu preguiça mesmo. Não há movimento sem curiosidade. Não consegui digitar mais do que um parágrafo sobre o assunto e voltei a atenção para os meus pés embaixo da mesa. Quando eles saltitam é sinal de excitação. Sou um jabuti. Carrego minha vida nas costas e conheço o seu peso, paro no momento que quiser, pesquiso para além do meu casco porque viver não é suficiente, e escrevo.
Os pés da mesinha são cabeças de elefante esculpidas na madeira, as trombas se esticando até o chão. Olhos e presas desuniformes pintadas à mão por artesãos indianos. Pétalas e folhas colorindo o tampo como se o animal carregasse uma manta florida. O elefante quadrado esconde-se ao lado do sofá para ouvir histórias que nunca mais serão esquecidas. Como a do primo tido como autista e que na verdade era um anjo. Sentava-se e conversava com os mendigos, levava comida, comia com eles. E um dia, voou. Ou a da tia muito feia que perdoava as escapadas frequentes do marido e era motivo de pena da família para no leito de morte confessar que ela também tinha um amante. E a do tio que andava com a cabeça ruim e mastigou um dos Reis Magos do presépio da casa da filha.
Sobre o elefante há uma vela numa cumbuca de metal decorado. Quando aceso, o fogo desenha figuras que se movem na parede e assombram o ambiente. Mas o elefante indiano não tem medo de nada. Nem dos mortos, nem dos loucos, nem das pessoas que acham que não são personagens das histórias estranhas dos outros.
Na minha janela não passa cachorro caçando lixo, nem cavalo, porco, vaca, bezerrinho indo pro curral. Não se vê mulher carregando roupa na bacia ou homem com enxada no ombro, menino descalço na bicicleta, galinha ciscando. Da minha janela não alcanço as montanhas, a mata, o café, a cerca de arame farpado com um retalho engastalhado nela. Na minha janela a mangueira não madura, a poeira não levanta, o varal não balança, a porteira não bate. Da minha janela não ouço o rio, o pio de passarinho, o silêncio profundo. Não tem beiral na minha janela, nem cortina de renda, nem tranca emperrada. Da minha janela eu não espio quem está chegando. Não debruço para conversar à toa. Não aceno para despedir. A vida não passa na minha janela. Só passa nuvem e avião.
Já estava tudo no carro para a viagem, malas, caixas com comida, travesseiros no banco de trás, o lampião a gás que a tia comprou para pendurar na varanda do sítio. O cheiro chegou antes do barulho da explosão. Por último, a fumaça. O carro ainda na garagem. Corremos para ver. Eu adorava aquela casa e meus cinco primos, três deles, os Irmãos Metralha, assim chamados porque eram muito parecidos e porque juntos incorriam em delinquências juvenis ao mesmo tempo criativas e desastrosas que terminavam em braços e pernas quebradas, pontos na cabeça, raramente num plano exitoso. A casa, no bairro do Sumaré, em São Paulo, não tinha portão fechado nem adulto de guarda nos nossos movimentos dentro e fora dela. Podia-se quase tudo. Era barulhenta e fascinante, cheia de gente e bichos de todas as origens. Cachorros, gato, papagaio. A tia tinha especial carinho pela Magali, uma coruja solta no quarto dela. Era uma bolinha de penas ancorada na penteadeira que, à noite, revelava os grandes olhos e o bico voando por todo o andar de cima. Na banheira morou uma cobra, a Monica. E, durante uma época, havia um jacaré se arrastando pelo quintal. A Seba, que trabalhava lá e era da farra e da autoridade, defendia-se com a vassoura quando ele aparecia na cozinha atrás de comida.
No dia do incêndio, a Seba ainda tentou acudir com pesados baldes de água até perceber que o fogo já escapava ao controle e lambia a janela do quarto em cima da garagem. À gritaria geral misturou-se a sirene dos bombeiros que vieram correndo num escândalo maravilhoso. Estávamos excitadíssimos com as chamas altas e as sucessivas explosões que provocavam. A vizinhança amontoou do outro lado da rua. Mesmo crianças, éramos consultados sobre as condições em que a coisa se deu, nos sentimos superiores, donos do incêndio. O comentário era de que se a perda foi grande deveríamos agradecer a Deus pelo acidente ter acontecido antes de pegarmos a estrada. Aquilo soava trágico, acrescentava comoção ao momento, mas estávamos animados demais com a confusão, o susto, a aventura, para entristecer. Sequer nos passou pela cabeça a possibilidade de ser uma tragédia.
A tia certamente conta outra história, mas não quero ouví-la. A realidade depende da posição de cada um. E eu gosto de guardar a fotografia do ângulo que tirei.
Com Maria Teresa Prado Sumares, Silvia Prado Segall, Paulo Sumares, Marcelo Prado Sumares e Amalia Prado Sumares.